Crónica de Licínia Quitério | Dantes é que era bom

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Dantes é que era bom

por Licínia Quitério

 

“Naquele tempo a escola era risonha e franca…” Assim começa um poema que nos meus tempos de menina, meu Pai me deu a conhecer. Trago este verso com o propósito de reflectir nas relações havidas por cada geração com a aprendizagem do seu tempo. Naturalmente é a minha geração que me serve de amostra porque a observo nos abundantes ditos e escritos que citam e ilustram opiniões sobre escolaridade. É vulgar a crítica negativa à escola do presente e concomitantemente o elogio saudoso da escola do passado, exactamente aquela em que o crítico foi aluno.  Neste nosso tempo de mudança acelerada, sem se dar azo a reflexões e cavalgando conclusões, ouvimos amiúde, tantas vezes descontextualizadas, expressões que pretendem ajuizar sobre o binómio ensinar-aprender, pela sua natureza nunca satisfatoriamente resolvido.

  • “Hoje não se aprende nada. Os miúdos não sabem fazer contas. Haviam de saber a tabuada que nós ainda hoje sabemos de cor.

  • “Verdade. Na minha escola não se podia contar pelos dedos. Era cada reguada que os dedos ficavam logo esticados. Hoje não, não se pode bater nos meninos, mas eles podem bater nos professores, uma vergonha.

  • E os erros, isso então… Se eu desse mais de cinco no ditado já sabia as lambadas que levava. E fôssemos lá fazer queixinhas em casa… Levávamos mais. O meu pai costumava dizer, só se perdem as que caem no chão. – E História, não sabem nada, nem os cognomes dos reis. E Geografia, quem é que sabe os rios e as linhas férreas?

— Dizem que já não é preciso, que está tudo na internet.

— Pois seja, no meu tempo sabíamos muito mais sem essas modernices. Depois saem uns belos engenheiros e é ver o que duram as belas obras. Já não se constrói como antigamente. Veja-se o nosso Convento. Ali de pé que nem o terramoto o deitou abaixo.

  • Saudades da porrada, não. Lá isso… Mas quem me dera nesse tempo. Os meus netos nem sabem o que é trepar às arvores, aos ninhos, pois, que agora isso também é proibido.

  • Esquisitices lá dos partidos, que eu de política não sei nada e até tenho raiva de quem sabe. Sim, já me têm chamado isso e reaccionário e mais não sei quê, mas é para o lado que eu durmo melhor. Eles nem esfolam os joelhos, não é que eu quisesse, meu rico neto, mas a cair, a partir a cabeça, a gente cresceu e somos pessoas de bem. Nem todos, pois claro, que nos rebanhos há sempre ovelhas ranhosas.”

Este João e este José sabem que o tempo não volta atrás, que a velhice é uma grande cabra, que a escola não tinha assim muita graça, que o melhor era o recreio e a bola de “catchu”, mas quem lhes dera agora não sentirem aquelas dores no corpo e voltarem ao cigarrinho, que até isso tiveram de largar. Resta-lhes dizer mal de tudo o que é moderno, desabafar, afirmar a torto e a direito que os professores não se dão ao respeito, uma vergonha, mesmo que deixando escapar a ternura digam dos netos: “Coitadinhos, já não tiveram que passar pelo mau tempo que foi o meu. Se Deus quiser não tarda saem doutores.”

      Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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